Hoje é dia da mulher. O outdoor traz a imagem de uma moça incrivelmente bela. A moça do outdoor olha sorridente para uma lindíssima cesta com flores e chocolates que um par de mãos masculinas oferece a ela. Na parte superior do cartaz a frase em letras enormes: “FELIZ DIA INTERNACIONAL DA MULHER”. Joana, dentro do ônibus ─ parado no meio do engarrafamento do trânsito ─ olha o outdoor estrategicamente fixado do outro lado da rua. Era o terceiro cartaz gigante que ela notara esta manhã, todos apresentavam fotos de mulheres belas e sensuais com menções ao Dia Internacional da Mulher.
Por que neste dia dedicado à mulher esses caras da publicidade e das empresas inserem nas propagandas somente mulheres bonitas, mulheres de pele de pêssego, mulheres brancas, magras, peitos durinhos, coxas sem estrias, mulheres cujas fisionomias não demonstram que são guerreiras, que lutam pela sobrevivência, que lutam por direitos de igualdade de gênero e por um mundo melhor? ─ Joana vai pensando. Por que os construtores desses cartazes gingantes não lembram das mulheres tidas como feias pela sociedade, das mulheres com o rosto cheios de rugas? Rugas que o tempo esculpiu, rugas que a pobreza esculpiu, rugas que a preocupação esculpiu, que a labuta esculpiu e, por isso, são as verdadeiras heroínas que mereceriam as homenagens neste dia e sempre!
Quem vai se lembrar de inserir num cartaz gigante uma mulher da comunidade a qual, tendo marido ou não, luta para própria sobrevivência e da família? Quem vai se lembrar da empregada doméstica que é explorada e até humilhada por diversas patroas, pelo marido, pelos filhos dessas patroas? O que são essas empregadas senão guerreiras? Todas heroínas!
Quem vai se lembrar de meter num outdoor, como este da esquina, a foto daquela senhora de idade avançada que agora circula entre os carros parados neste engarrafamento vendendo panos de prato? Lembrou-se da moça vendedora de água mineral sempre perambulando pelas ruas do centro da cidade empurrando o carrinho de bebê com o filhinho de poucos meses enquanto tenta vender as garrafinhas de água gelada aos transeuntes. A foto dessa jovem mãe guerreira bem que podia ilustrar um desses outdoors com uma mensagem de parabéns pela luta cotidiana para sobreviver. Essa mãe guerreira sem emprego fixo, sem apoio social, sem direito à creche para deixar o bebezinho enquanto trabalha… enquanto peleja penosamente todos os dias. Quantas lutas ainda serão travadas para que as brasileiras…também os brasileiros pobres tenham direito à dignidade?
Nenhum empresário, nenhuma agência de publicidade colocaria num outdoor ou numa propaganda de TV uma imagem, por exemplo, da vizinha dona Sônia como ilustração do Dia Internacional da Mulher. Dona Sônia gorda, peitões despencando sobre a barriga graúda dentro da roupa modesta! Em cima da foto, algo assim: “Feliz dia da mulher”. Não, “feliz dia da mulher não”! Não é dia de felicitá-las, mas de reavivá-las! De animar as mulheres da luta pela sobrevivência, da luta pelo fim das diferenças de gênero, da luta pela construção constante da autonomia feminina…
Dona Sônia! Dona Sônia: pai e mãe ao mesmo tempo! Dona Sônia muitas vezes teve que se defender do marido machista, briguento, beberrão até conseguir separar-se dele! Dona Sônia cria os oito filhos apenas se virando com o modesto provento das faxinas e do lucrinho que vem das cocadas que ela vende pelas ruas da cidade! Dona Sônia perdeu dois filhos para a violência: um, confundido como bandido, levou uns dez tecos disparados por policiais em blitz na comunidade; o outro vítima de bala perdida quando vinha do trabalho! Dona Sônia perdeu a elegância física nas adversidades da vida! Sem a elegância estimada pela sociedade, ela não teria vez no outdoor do Dia Internacional da Mulher. Mas dona Sônia, assim como as demais mulheres pobres deste Brasil, tem a alma elegante, lindíssima! A beleza de se virar para sobreviver, para amenizar as agonias da vida! A elegância da luta e da superação. E ela ─ assim como todas as mulheres pobres, negras, brancas, pardas das favelas, das periferias das zonas rurais anônimas do Brasil ─ são as grandes heroínas esquecidas. Heroínas que não cabem na hipocrisia estampada nestes outdoors.
O trânsito volta a fluir. O ônibus em movimento. Joana olha mais uma vez o outdoor: a mulher bonita na imagem. No fundo, no fundo ─ retomou o pensamento ─ aquela mulher bonita, todas aquelas mulheres ditas bonitas nos cartazes gigantes pela cidade são frutos da objetificação da mulher e não estão expostas ali para ilustrar uma felicitação sincera sobre o dia Internacional da Mulher. Os políticos, a mídia desviam-se do verdadeiro significado desta data importante!
Lembrou-se da palestra que assistira há alguns anos em que a líder da comunidade dizia que o Dia Internacional da Mulher era um momento para reflexão, para pensar no papel da mulher na sociedade, para rememorar a luta das mulheres pela igualdade de gênero, contra o machismo, contra a opressão imposta às mulheres… mas onde encontrar um cartaz exaltando essa luta, mostrando a opressão do sistema…. louvando as mulheres sobreviventes da opressão, sobreviventes do sistema, como ela, como dona Sônia, como todas as mulheres neste ônibus superlotado, todas com cara de trabalhadoras, de lutadoras… todas sobreviventes da Covid-19 e da misoginia praticadas até por políticos?
Sol já brilhando forte. Olhou o relógio: seis e cinco. Já tinha mais de uma hora de viagem, faltava mais uma hora até chegar à zona sul, entrar no condomínio de consultórios médicos onde trabalha, guardar a marmitinha na geladeira do almoxarifado e começar mais um dia de trabalho, mais um dia de intermináveis faxinas. Pensou no filho, que já deveria estar de pé e tomando o café que ela tinha feito. Depois do café, ele pegará a marmita, colocará na mochila, irá para a escola. Terminando as aulas, irá direto para o supermercado onde trabalha. Lá, antes de começar a trabalhar, escondido no depósito , almoçará. A filha já deveria estar no ônibus para a Universidade…estaria cochilando, se tiver achado lugar para se sentar. A filha tinha dormido já de madrugada se esforçando nos estudos…. Toda a família ocupada na faina da sobrevivência! À noite, por volta das vinte horas ─ depois de mais de duas horas de transporte coletivo ─ , quando chegar em casa, o abraço gostoso vindo dos dois filhos lhe renovará a vida, lhe massageará a alma. O coração baterá mais forte de puro contentamento. Agradecerá a Deus pela família linda que tem, por ser pãe de duas criaturas maravilhosas, por ser uma mulher de lutas e de vitórias, por ser empoderada!
Vald Ribeiro
(vald@palavras1.com.br)