O ônibus deslizava tranquilo pela Atlântica. O mar carioca sorria para mim sua melhor beleza. E eu olhava com toda paixão para a praia, o calçadão, os morros ao longe quando a senhora de cabelos prateados de uns setenta anos ─ que tinha sentado há uns dez minutos ao meu lado ─ me interpelou, enquanto o dedo indicador dela mostrava uma foto no jornal:
─ Você viu, como o Bolsonaro é mulherfóbico?
Fiquei tão encantado com o neologismo que a simpática senhora soltou que devo ter perdido uns dez segundos nesse frisson. A foto do jornal era de Bolsonaro com o braço estendido como que impedindo que a vice-governadora de Santa Catarina ficasse mais à frente num evento político na praia. Ela deve ter estranhado o meu silêncio. E ainda com o dedo na foto.
─ Você não é bolsonarista não, né, meu filho?
─ Não! Não graças a Deus não. Muito pelo contrário, sou esquerda raiz.
─ Ah! Que ótimo! Porque eu já me meti em encrencas por causa dessa minha língua solta. Eu já vou logo soltando o verbo contra Bolsonaro. E você acredita que eu quase fui morta por um Bolsonarista num ônibus? Foi no ano passado. Em setembro, se não me falha a memória… Eu falava ao homem que eu ainda não sabia que era bolsonrista. E eu falava com toda calma e gentileza que Deus me deu sobre aquele discurso vergonhoso que o Bolsonaro fez lá na ONU. Aí esse senhor perdeu a linha comigo e ficou tão furioso que se não fosse um rapaz que estava no banco atrás de mim, que segurou no braço do agressor, eu hoje já seria finada… ou, no mínimo, estaria com a cara quebrada e toda remendada. E olha que sou calma e falo neste tom que você está vendo. E sobrou para… o rapaz que… me salvou porque o bruto… partiu para esse que me salvou… e eu… ─ ela arfava tanto que as palavras saiam cortadas ─ até pensei que iria sair tiros. Nem quero falar nisso porque… ainda entro em pânico.
─ Eu imagino o sofrimento que a senhora passou. Tô para encontrar um bolsonarista que saiba trocar ideias sem ser violento. Eu tenho evitado falar de política com bolsonaristas, inclusive os da minha família. Não quero gerar estresse para mim. Mas, quanto a notícia aí que a senhora mostrou, eu vi ontem. Fiquei estarrecido. Mais uma prova de …
─ Que ele é mulherfóbico, meu filho! Eu nunca vi político mais mulherfóbico que o Bolsonaro.
Quis perguntar se ela seria a autora da palavra, ou seria um neologismo que nasceu natural na linguagem do povo ou da imprensa. Mas resolvi guardar minha curiosidade. E lasquei meu ponto de vista:
─ Não dá para entender como uma mulher tida como bem-informada, como deve a vice-governadora de Santa Catarina, apoie o Bolsonaro.
─ Ora, meu filho! O que interesse político não faz? Ela está é movida pelos interesses políticos. Quantas outras mulheres estão aí apoiando este presidente? Muitas! Muitas! Mas olhe só a cara dela ─ apontou o dedo para a foto estampada no jornal. Veja que ela nem conseguiu fazer cara de paisagem! Dá para ver que ela está zangada, ou, no míííínimo decepcionada. É uma boa simbologia para a maneira como esse governo trata as mulheres: sempre deixando o público feminino para trás.
─ E até agora ela não se pronunciou, né?
─ Acho que não.
─ A gente não pode fazer um julgamento precipitado, mesmo que a imprensa tenha mostrado o fato. Vai que o presidente tenha dado o ordem mal-educada para outra pessoa. Mas pelo que vi, a ordem machista que Bozo deu foi em direção à mulher.
─ Meu filho, esse cara fala tanta barbaridades contra as mulheres! E essa foi mais uma. Lembra daquela história da “fraquejada”? E como é o tratamento dele com as jornalistas, por exemplo? Teve jornalistas… tantas… que ele já ofendeu… teve o caso daquela deputada… você viu?
─ Já. Vi sim. Teve uma jornalista que o presidente mandou que ela retrocedesse na vida dela desde a universidade até entrar no útero da mãe e nascer de novo.
─ Então! Não tá descartada meeeexxxmo a possibilidade de que ele tenha sido mulherfóbico com esta vice ontem. Eu acho que foi mais um ato de mulherfobia, meu filho.
A simpática senhora, calmamente se levantou, puxou a cordinha da campainha, deu uma tapinha carinhoso no meu ombro e disse:
─ Foi um prazer trocar ideias com você.
Agradeci a ela. Ela saiu resoluta do ônibus.
“Mulherfóbico”. “Mulherfóbico”. “Mulherfóbico”. A palavra ressoando em meu cérebro. Fiquei pensando se realmente esse adjetivo e substantivo não seria uma ótima substituição à palavra misógino. Seria um vocábulo mais acessível a todos os públicos e mais prático que a velha palavra misoginia e derivadas. Mulherfobia como um termo além do sentido de ginefobia ─ que é medo mórbido de mulher. Mulherfobia se ajustaria bem ao conceito de atitude discriminatória e violenta contra mulheres. Mas o que importa a mudança da palavra se o atentado à dignidade da mulher se perpetua no Brasil?
Vald Ribeiro
26 de julho de 2022
